Kultura Viramar

O Picaré do Tempo

Crônica de Vicente Cascione.

 

O Picaré do Tempo

Quando me dei conta eu já estava emaranhado nas redes sociais, como se fosse um animal marinho, uma garrafa pet, um detrito capturado por picarés e puçás, e levado num arrastão.

Eu ia começar a falar de um assunto sem nexo algum com pescaria, e, de repente, revivo as noites de entradas no mar ao lado da ilha Urubuqueçaba, água pelo peito, puxando picarés grávidos de modestos camarões, alguns siris, e peixes inexpressivos a faiscar sob à luz da lua, debatendo-se na areia da beira-mar, inconformados com a morte.

Vou ao dicionário, depois de tantos anos, para ver se havia ali a palavra picaré, e descubro, com vaga emoção, que a palavra, embora tenha obscura origem etimológica, designa a rede de pesca usada no litoral de Santos, segundo atesta o velho Houaiss em seu legítimo verbete.

Se alguém, de rede em punho, entrar no mar em qualquer trecho deste litoral estendido nas lonjuras abertas entre o norte e o sul do País, arrastará redes de toda a sorte, mas jamais um tosco, eficiente, e honrado picaré, nascido e criado nestas bandas.

Apesar de tudo, não me atraem as pescarias, e isso tem a ver com minha escassa paciência, com o fato de precisar trapacear com os peixes colocando iscas no anzol, e com minha inaptidão para inventar histórias de pescador.

Certa vez, numa cidadezinha do interior, fisguei dois ou três carás e um lambari, nas águas turvas de uma pequena lagoa. E encerrei a carreira ali, devolvendo os pequenos peixes à água de onde não deveriam ter saído.

Mas veja, amável leitor, quanto palavrório sobre redes, mares e peixes, e, na metade deste texto, ainda não consegui entrar no assunto.

É o seguinte. As redes sociais estimularam, entre outras coisas, o instinto da divergência, da polêmica, e do gosto por opinar só para contrariar, existentes em incontáveis pessoas que antes só dispunham de meios de comunicação cujo alcance, abrangência, e alarde, eram discretos e limitados.

Hoje, alguns faíscam nas redes, e se debatem, e batem, a apanham, e matam, e morrem moral e intelectualmente, em grave incontinência.

O tempo disparou, as coisas mudaram, as gentes se modificaram, as idéias e a falta delas foram expandidas, e fica a impressão de haver uma parte da humanidade encaixada na frase do poeta popular: “Tá todo mundo louco. Oba!”

Quando digo e insisto em dizer que os tempos são outros, aparecem alguns a falar que nada muda debaixo do sol.

Pois bem. Nesta semana, li na primeira página do principal jornal de Manaus, numa edição de 1904, uma matéria de primeira página, ilustrada por imensa foto, tendo a seguinte manchete:

“ÔNIBUS INVADE CASA E MATA VELHINHA DE 42 ANOS”.

Não vou me alongar com argumentos. Imaginem se o jornal fosse atual, publicado nesta pós-modernidade.

Chamar a mulher de “velhinha” seria uma gravíssima aberração, uma designação politicamente incorreta.

Hoje, teríamos: “Alguém da terceira idade, da melhor idade, e, na pior das hipóteses, uma idosa, perdeu a vida na tragédia causada por ônibus” (que continua sendo ônibus).

Mas o choque mais expressivo da notícia é vermos, em 1904, uma mulher de 42 anos, ser uma velhinha.

Os fatos imutáveis e as verdades prontas mudam, e, nesse arrastão vamos sendo levados pelos picarés universais do tempo.

Apesar da divergência dos divergentes.

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