Paradigmas Filosóficos

Humanos estão errados sobre a história da humanidade

FERNANDA MENA

[RESUMO] Em entrevista à Folha, o arqueólogo britânico David Wengrow comenta seu livro “O Despertar de Tudo”, trabalho iconoclasta, escrito em parceria com o antropólogo americano David Graeber, que refuta as visões consagradas sobre a história da humanidade. Segundo o autor, sociedades pré-históricas e povos indígenas desenvolveram formas de organização social e política tão ou mais avançadas que os europeus em aspectos como a democracia e a liberdade, mas tiveram suas contribuições descartas pelo cânone ocidental eurocêntrico forjado a partir do Iluminismo.

Mitos de origem são tão distantes quanto poderosos. Eles se confundem com a história oficial, hoje em acelerada reinterpretação e redescoberta, em um processo que já derrubou algumas estátuas pelo caminho.

Nesse processo, “O Despertar de Tudo: uma Nova História da Humanidade”, livro recém-lançado no Brasil do antropólogo americano David Graeber e do arqueólogo britânico David Wengrow, é um tsunami.

A obra estica essa trincheira até um passado tão remoto que se convencionou chamá-lo de pré-história, como se isso fosse possível, o que fez dele um terreno especialmente fértil para a imaginação.

Segundo os autores, boa parte daquilo que acreditamos saber sobre o surgimento da humanidade é, na verdade, muito pouco baseado em fatos e evidências e o poder dessas narrativas está reduzindo a amplitude de nossa percepção sobre o presente, seus enormes desafios e potenciais alternativas.

Em um momento crucial da humanidade, marcado por desigualdades recordes e pela crise climática, eles defendem uma nova perspectiva: os humanos estão errados sobre a humanidade.

Iconoclasta, “O Despertar de Tudo” antagoniza com interpretações até aqui consagradas, popularizadas em obras como “Sapiens”, do historiador israelense Yuval Noah Harari, “As Origens da Ordem Política”, do filósofo nipo-americano Francis Fukuyama, “O Mundo Até Ontem”, do geógrafo americano Jared Diamond, e “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, do psicólogo e linguista canadense Steven Pinker, todas citadas pela dupla.

Graeber e Wengrow argumentam que há hoje evidências científicas suficientes para sustentar, por exemplo, que os humanos caçadores-coletores não eram “primitivos e irreflexivos” como pensávamos. Os autores refutam o modelo linear de evolução que começa em um suposto estado natural, passa para o cultivo da terra e chega, então, a cidades, em uma complexidade crescente que requer a concentração de poder no Estado.

Na contramão, o livro apresenta as sociedades pré-históricas e os povos indígenas como um “desfile carnavalesco de formas políticas” capazes de produzir um caleidoscópio de novas possibilidades, todas descartas pelo cânone ocidental eurocêntrico que definiu, a partir do Iluminismo, as noções modernas de liberdade, civilização, Estado e democracia.

Para Graeber e Wengrow, essas definições fundamentais do liberalismo emergiram como uma reação às críticas feitas por lideranças indígenas das Américas, o Novo Mundo da época, que colocaram em xeque os valores e as estruturas sociais da Europa imperialista.

“As evidências estavam lá, cada uma isolada em sua área. Nós apenas começamos a ligar os pontos”, afirma Wengrow, 50, em entrevista por videochamada à Folha de sua casa em Londres, onde é professor de arqueologia comparada no Instituto de Arqueologia da UCL (University College London).

Quase dez anos depois da troca de ideias que motivaram o livro, Wengrow e Graeber concluíram as quase 700 páginas de “O Despertar de Tudo” certos de que causariam barulho.

Nada a que Graeber já não estivesse acostumado. Intelectual público de movimentos de repercussão internacional, como Occupy Wall Street, autor do slogan “nós somos 99%” e anarquista convicto, ele dedicou sua vida e sua carreira a repensar a sociedade sem conformismos.

O autor de “Dívida: Os Primeiros 5.000 Anos” e “Bullshit Jobs” planejava uma continuação do novo livro em dois ou três volumes para explorar melhor o novo território desbravado. Graeber morreu subitamente, aos 59 anos, semanas depois de concluir “O Despertar de Tudo”, durante suas férias de 2020 em Veneza, na Itália.

“Graeber me disse: nós vamos mudar o curso da história ao olhar para o passado”, lembra Wengrow. “Ele me falou que a repercussão seria grande, só não me avisou que não estaria comigo quando isso acontecesse.”

*

— O livro tem um subtítulo pretensioso: “Uma Nova História da Humanidade”. Como é possível renovar tudo aquilo que conhecemos sobre seres humanos e civilização?

— As imagens fantásticas do novo telescópio divulgadas recentemente mostraram o cosmos de uma maneira que nunca poderíamos ter imaginado antes. Estamos em um momento bastante semelhante em relação à compreensão científica da história humana.

Pela primeira vez, há técnicas disponíveis que nos permitem investigar o que os seres humanos fizeram há milhares ou mesmo dezenas de milhares de anos. O efeito não é diferente daquele produzido pelas imagens de todas essas galáxias: surgem novas possibilidades que nos colocam em uma perspectiva diferente.

Portanto, você está certa: o subtítulo é pretensioso. Mas ele também reflete uma genuína sensação de choque e descoberta. A imagem que se tem hoje da história humana é muito diferente da história que nós contamos para nós mesmos há séculos.

— Quais foram as principais descobertas que criaram novas perspectivas sobre o passado?

— A mudança mais importante é que, agora, podemos ver que os nossos antepassados não eram essas figuras estranhas e bidimensionais retratadas em livros ou no estudo da pré-história. Temos uma noção desses primeiros humanos como seres primitivos e irreflexivos, caçadores-coletores que apenas se adaptavam ao meio.

O que podemos ver nitidamente agora é que isso não é verdade, um insight que antropólogos como Claude Lévi-Strauss já haviam tido nos anos 1960. Não existe diferença entre nós e nossos antepassados muito remotos em termos de inteligência, de cognição e de consciência social e política.

Com isso, começamos a enxergá-los simplesmente como pessoas que, intencional e conscientemente, criaram outros modelos de sociedade ativamente rejeitados, mas que, em certos aspectos, estão além daquilo que nós fomos capazes de realizar.

— Como essas noções surgiram e vêm sendo reiteradas?

— Elas foram baseadas em experimentos filosóficos feitos por europeus há mais de três séculos. Eles viviam em uma época em que não era possível recuar no tempo e colher provas diretas do nosso passado remoto. Não existia nem sequer arqueologia.

No entanto, isso não impediu pensadores como Thomas Hobbes, no século 17, ou Jean-Jacques Rousseau, no século 18, de imaginar como deveria ser a humanidade em um tempo que eles denominaram de estado natural, no qual, despidos das armadilhas da civilização, restaria a nossa essência.

— Os dois, porém, chegaram a resultados diametralmente opostos.

— Exato. Eles chegaram a conclusões completamente diferentes. Rousseau imaginou que os humanos começaram como criaturas inocentes, felizes mas também estúpidas, que vagueavam pela selva, incapazes de mudar suas circunstâncias, conformados em sua simplicidade. A agricultura e a propriedade privada foram inventadas, e essa civilização arruinou tudo.

Já Hobbes imaginou também um início simples para a história humana, que não era tão feliz. Ao contrário disso, humanos altamente egoístas viviam em estado de guerra, e a única coisa capaz de impedir o tumulto permanente foi a criação do Estado, com leis, tribunais, prisões, forças policiais e Exércitos, maneiras de conter o que seria nosso instinto animalesco e competitivo.

Estranhamente, ainda que Rousseau e Hobbes partissem de premissas muito diferentes, eles chegaram em um mesmo lugar, no qual somos levados a simplesmente aceitar a pobreza, os sem-teto e outras formas extremas de desigualdade como se fossem efeitos colaterais naturais da civilização. Essa história vem sendo reiterada em livros que se tornaram muito populares.

— Que tipo de descoberta foi capaz de desafiar essas noções?

— A arqueologia está vivendo sua idade de ouro. Nasceu focada na Europa, no Mediterrâneo e no Oriente Médio e hoje é uma disciplina global. Há milhares de arqueólogos trabalhando na China, na África Subsaariana, no Brasil e nos EUA.

As técnicas disponíveis hoje, após uma série de revoluções tecnológicas das últimas décadas, permitem a reconstrução de ambientes da Antiguidade, suas dietas e formas de mobilidade. Isso é fenomenal, porque agora começamos a saber das histórias de regiões que foram descritas como se não tivessem qualquer história.

— Como quais?

— A Amazônia é um grande exemplo. Até bem pouco tempo atrás, os povos indígenas amazônicos eram descritos como se fossem ancestrais contemporâneos ou relíquias vivas de organizações humanas anteriores à revolução agrícola e ao surgimento das cidades.

O que a arqueologia e a antropologia trazem hoje é simplesmente extraordinário. Sabemos que, há cerca de 2.000 anos, partes da Amazônia já estavam altamente desenvolvidas em termos de sistemas de estradas e arquitetura monumental, além de formas sofisticadas de comércio e de gestão de um território muito vasto.

Ou seja, descobrimos que essas sociedades têm uma outra história. Estamos agora na fase de ligar os pontos e reconstruir o que aconteceu historicamente em regiões sobre as quais escrevíamos de maneira bem pouco histórica.

— Como essas novas histórias desconstroem o cânone ocidental: as ideias de civilização, de Estado e até mesmo de democracia?

— É curioso que a democracia seja descrita como algo raro, que ocorreu primeiro em um grupo restrito em Atenas no século 5 a.C. e que, depois de milhares de anos esquecida, foi redescoberta pelos europeus.

Atenas estava muito longe de ser uma democracia perfeita. Era uma sociedade patriarcal, em que as mulheres estavam completamente excluídas de participação política, a escravidão era normal, vivia-se em guerra com seus vizinhos. Essa é a nossa referência de nascimento da democracia. Hoje, há muitos relatos de comportamento democrático em praticamente qualquer outra parte do mundo.

— Quais?

— Várias partes da África, da Oceania, da América do Sul e da América do Norte. Há um debate sobre a medida em que os pais fundadores dos EUA modernos e também os filósofos iluministas europeus podem ter absorvido ideias-chave sobre democracia e liberdade a partir de sociedades não ocidentais que estavam colonizando.

— Pode dar um exemplo?

± Descrevemos no livro relatos fascinantes da conquista do México e de como os espanhóis prepararam o ataque à capital do império asteca, no início do século 16, com a ajuda de um grande número de guerreiros e aliados nativos de uma cidade-estado chamada Tlaxcala. Quando você vai às fontes dessa que é uma nota de rodapé, descobre algo extraordinário: Tlaxcala era uma espécie de democracia que, obviamente, nunca foi influenciada pela Grécia Antiga.

Há relatos fascinantes de como eles geriam as cidades sem governantes e dos rituais pelos quais formavam a classe política, que tinha de passar por longas provações incrivelmente dolorosas, em que eram chicoteados, esfomeados e ridicularizados, para quebrar seus egos e fazê-los lembrar que seu papel era encarnar o povo e não projetar suas próprias preocupações. É quase o oposto das expectativas que temos com os políticos hoje.

O livro cita relatos escritos por jesuítas e outros colonizadores europeus que trazem perspectivas muito novas sobre os povos originários. Temos muitos relatos de jesuítas enviados à região dos Grandes Lagos, no Canadá, como parte de um projeto imperial colonial para converter esses povos em cristãos. São terras habitadas por povos das línguas algonquinas e iroquianas. Os jesuítas descobriram que o povo local, que esperavam ser primitivos e que reconheceriam de imediato a superioridade da fé cristã e da civilização europeia, era o contrário disso.

— Como assim?

— Há relatos engraçados de jesuítas frustrados com os ótimos contra-argumentos que ouviam de indivíduos desses povos. Pessoas que nunca haviam lido Platão, mas tinham habilidades retóricas impressionantes e estratégias de argumentação. Os jesuítas não tinham qualquer razão para romantizar esses povos, que consideravam pagãos e perversos e cujo modo de vida estavam tentando destruir. A forma como esses encontros foram registrados teve um impacto enorme no pensamento europeu e naquilo que hoje chamamos de Iluminismo.

Esses relatos foram considerados ficção e, talvez por isso, nunca tratados como evidência. Quando isso mudou? É tudo muito nebuloso. Houve uma mistura. De um lado, relatos de sociedades nativas americanas escritos por indivíduos que viveram nas colônias e aprenderam línguas locais —jesuítas, mas também soldados e comerciantes. Seu impacto potencial era explosivo, mas o acesso era muito limitado.

Esses relatos se tornaram base para outros trabalhos que eram pura ficção, de um gênero extremamente popular no Iluminismo, baseado na forma de diálogos. De um lado, um europeu representando a própria civilização, de outro, uma espécie de sábio selvagem cético de algum lugar exótico.

O texto-chave aqui é “Diálogos curiosos entre o autor e um selvagem de bom senso que viajou”, publicado em 1703 pelo aristocrata francês barão de Lahontan, que viveu na Nova França por dez anos, aprendeu pelo menos duas línguas nativas e teve interações militares e políticas com figuras muito importantes das nações indígenas. Os diálogos que publicou seriam muito próximos das conversas reais que teve com um chefe dos huron-wendat chamado Kandiaronk.

— Como sabemos que não é ficção?

— Kandiaronk estava na Grande Paz de Montréal, o tratado feito entre o governador da Nova França e as nações indígenas em 1701, e há muitos outros relatos sobre ele, que era famoso na região. Um guerreiro em batalhas estratégicas, mas também um diplomata e famoso orador e intelectual. O livro não é uma transcrição literal, ele inventa coisas, certamente, mas é, sem dúvida, um produto desse encontro colonial que se torna muito influente nos círculos intelectuais europeus.

Lahontan se torna amigo de [Gottfried Wilhelm] Leibniz, filósofo alemão que comenta em carta a um amigo que Kandiaronk é uma pessoa de verdade, chefe da nação huron-wendat, e que chegou a viajar para a França, mas que valorizou sua civilização acima da europeia.

— Um dos aspectos mais interessantes do livro é a crítica indígena à civilização europeia. De que forma ela foi incorporada ao que chamamos de pensamento ocidental?

— Indiretamente e, por vezes, até mesmo negativamente. Houve um forte “backlash” contra os valores expressos nessa crítica indígena, seja sobre o cristianismo, seja sobre a liberdade sexual das mulheres e seu direito ao divórcio.

Há, ainda, críticas importantes sobre o papel do dinheiro e da riqueza material na França e, por associação, em toda a Europa. Observadores indígenas ficaram escandalizados com a situação das pessoas sem-teto. Como era possível deixar seu próprio povo cair nessa condição?

O que discutimos no livro é como a história da história humana foi inventada como uma espécie de resposta muito inteligente à crítica indígena. É possível traçar esse percurso a partir das interações entre filósofos do círculo de Adam Smith, que passaram a classificar as sociedades de acordo com os modos de produção, que, de alguma maneira, passa a classificar também quem eles são. Nós ainda pensamos e vivemos nesse tipo de mundo.

— Como esses mitos prenderam a humanidade em um modelo de democracia liberal capitalista?

— Existe o problema da falta de evidências desses mitos e uma espécie de problema político, porque chegamos a uma encruzilhada muito perigosa na nossa relação com o planeta. Nesse contexto global, não parece uma grande ideia simplesmente continuarmos a repetir histórias que têm pouca base factual, mas que têm o efeito narrativo de reduzir as possibilidades humanas.

— Se essas histórias sobre a humanidade são míticas e equivocadas, como explicar que tenhamos pelo planeta arranjos políticos tão semelhantes?

— A resposta a isso é a própria história moderna. Sabemos que a forma como os Estados-nação modernos se estabeleceram em boa parte do mundo não teve o caráter de uma evolução gradual, mas foi estabelecida por meio da força, do império, do colonialismo, do genocídio.

— O Brasil vive hoje uma crise na relação entre o Estado e os povos indígenas. Qual pode ser o papel do país na construção ou na destruição de um novo futuro possível?

— Meus amigos e colegas que trabalham de perto com indígenas no Brasil relatam que esses povos retomam a crítica indígena feita aos europeus no século 18. Em muitos aspectos, as populações indígenas estavam à nossa frente, mais avançadas em termos de valores que hoje são caros a nós, como democracia, liberdade feminina, higiene urbana, saúde e a condição física. O resultado disso, no século, 18 foi obviamente um desastre.

Hoje, meus colegas contam que cada aldeia tem seus intelectuais indígenas com suas críticas brilhantes. Entre eles, Davi Kopenawa e sua crítica xamânica do capitalismo. Especialmente em questões ambientais, se olharmos para o que aconteceu na COP26, na Escócia, muitas das ideias alternativas aos sistemas extrativistas que dominaram o mundo foram levadas por filósofos indígenas a partir das experiências desses povos com o território.

Por isso, talvez estejamos hoje em uma situação que é como uma segunda chance para a humanidade. Temos a oportunidade de aprender com as pessoas a partir das coisas que realmente nos interessam, ou que deveriam nos interessar, e que estão à nossa frente. A pergunta hoje é: será que vai ser diferente?

DAVID WENGROW, 50
Doutor pela Universidade de Oxford e professor de arqueologia comparada no Instituto de Arqueologia da UCL (University College London), desenvolve pesquisas sobre a formação do Estado, abordagens cognitivas e evolutivas da cultura e arte e estética pré-históricas. Autor, entre outros livros, de “The Archaeology of Early Egypt. Social Transformations in North-East Africa, 10,000-2650 BC” e “O Despertar de Tudo”, com David Graeber.

Foto: O arqueólogo britânico David Wengrow (esq.) e o antropólogo americano David Graeber, autores de ‘O Despertar de Tudo’ – Kalpesh Lathigra/Divulgaçã

Fernanda Mena
Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

(Fonte André Vallias)

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