Brasil: O que rola agora

“Lockdown” com justiça social, já!

Dois estudos (da FGV e Unicamp) confirmam as piores previsões sobre a covid-19. Fechamento das cidades tem apoio popular, mas exige a redistribuição de riquezas e a reorganização produtiva compatíveis às de uma Economia para a Vida

I. A grande disjuntiva brasileira

No momento mais grave da pandemia de covid-19, o Brasil está à beira de passo catastrófico. Em muitos estados e municípios – inclusive em parte daqueles cujos governantes opõem-se a Jair Bolsonaro – ensaia-se o retorno às ruas. A pressão do poder econômico intensificou-se. A sabotagem do Palácio do Planalto às medidas protetivas nunca cessará. Temerosas, as autoridades vacilam. Em São Paulo, o distanciamento social começará a ser “flexibilizado” em 1º/6. No Distrito Federal, os shoppings estão sendo reabertos. No Maranhão, a quarentena durou muito pouco. No Rio de Janeiro e em partes da Região Sul, até os templos religiosos estão sendo autorizados a reabrir.

Nenhuma destas decisões é tomada com base em evidências ou estudos que as recomendem. Pode haver, nos próximos meses, dezenas ou centenas de milhares de mortes desnecessárias e estúpidas, conforme advertem dois relatórios recentíssimos, de instituições científicas renomadas. Os governadores e prefeitos sabem que correm enormes riscos e torcem para que as piores previsões, como que por milagre, não se concretizem. Eles foram convencidos de que a opção que poderia evitar uma tragédia – o lockdown, ou paralisação rigorosa de todas as atividades econômicas não essenciais – não funcionará. Ao contrário do que ocorreu com grande sucesso na China e, a partir de certo ponto, na Itália, Espanha e mesmo em partes dos Estados Unidos, o Brasil não teria condições de realizá-lo.

Uma pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada hoje, sugere o contrário. Diante da ameaça, 60% dos brasileiros defendem o lockdown – quase o dobro dos (36%) que se opõem a ele. A adesão é mais forte entre os que se sabem vulneráveis e entre os grupos que, costumeiramente, apoiam as ideias progressistas: os de renda mais baixa (67%); os mais jovens (72%); os nordestinos (69%); os estudantes (83%); as mulheres (68%).

Porém, a despeito deste posicionamento nítido, a enquete também mostra que uma parcela crescente da população não está cumprindo as regras que julga necessárias para enfrentar a pandemia. O número dos que saem de casa “apenas quando é inevitável” declinou de 54% para 50%, nas últimas sete semanas. Em sentido oposto, aumentou de modo alarmante – de 24% para 35% – o percentual dos que “saem para trabalhar ou fazer outras atividades”. Os “totalmente isolados”, que nunca saem, reduziram-se de 18% para 13%.

O contraste entre a vasta consciência sobre o que precisa ser feito e o cumprimento cada vez menor destas normas tem uma explicação óbvia. À medida em que os tentáculos da covid-19 se espraiam para as periferias e o interior do país, eles atingem grupos populacionais que, embora adotem atitude responsável diante da doença, carecem de condições materiais para fazer a coisa certa. Dois fatores concorrem para isso. Primeiro: faltam a estes brasileiros condições financeiras mínimas para permanecer em casa. Eles são, em grande maioria, trabalhadores por conta própria, em posições que a sociedade torna subalternas, num país cada vez mais desigual, precário e endividado. Um motorista de aplicativo, uma faxineira, um encanador, um vendedor ambulante, uma dona de salão de belezanão podem sustentar-se com os míseros R$ 600 do “auxílio emergencial” aprovados (e pagos de modo provisório e incerto) pelo Estado. A pena, caso não se exponham ao vírus, é despencar nos abismos de exclusão social. Segundo: o distanciamento social, nas periferias, é extremamente penoso. Requer, além de disposição psíquica férrea, equipamentos especiais. Por exemplo, máscaras de alta proteção; testes abundantes e sem custo; hospedagem fora do domicílio para os contagiados. Nada disso – nem renda suficiente, nem meios que aliviem a dificuldade de isolamento – foi oferecido até hoje pelo Estado, este mesmo ente que, numa penada, autorizou os bancos a criarem, do nada, R$ 1,2 trilhão.

No dia em que se escreve este texto – 27/5 – o Brasil está diante de uma disjuntiva. O total de mortos pela covid-19 está a ponto de ultrapassar a barreira dos 25 mil. O país tornou-se o epicentro mundial da pandemia, o que registra, a cada dia, o maior número de óbitos por milhão de habitantes. Além disso é, das nações mais fortemente atingidas, a única em que tanto a curva de contágios quanto a de vítimas fatais continuam a crescer rapidamente. Há apenas duas opções. A primeira é naturalizar a tragédia; aceitá-la como mais um signo da impotência nacional; enfiar o rabo entre as pernas e esperar pelas dezenas ou centenas de milhares de mortos que cairão sobre nós.

A outra é adotar agora, uma espécie de lockdown com justiça. Implica tornar mais radicais as normas do #fiqueemcasa – restringindo os serviços autorizados a funcionar, reduzindo a possibilidade de circulação e estabelecendo multas para o descumprimento. Exige, ao mesmo, oferecer a todos as condições necessárias para esta quarentena real. Renda da Cidadania, de no mínimo 1 salário mínimo por CPF; renegociação das dívidas, com redução dos juros pessoais à taxa Selic. Reorientação econômica, para produzir no Brasil, rapidamente, os equipamentos necessários a combater a pandemia (em especial testes e máscaras); para oferecer abrigo a todos; e para garantir condições de isolamento aos contaminados que vivam em casas com alta densidade de moradores.

II. Rumo ao milhão de mortos?

Há cerca de dois meses, o biólogo Átila Iamarino alertou o país para o risco de nos depararmos com um milhão de mortes, caso o governo mantivesse a negligência criminosa diante da covid-19 e não houvesse reação à altura. Sua advertência repercutiu, num primeiro momento. Estados e municípios tomaram as primeiras medidas protetivas de distanciamento social. Porém, logo vieram os recuos, seja devido à sabotagem incessante da presidência da República ou à convicção insuficiente das demais autoridades (vale cotejá-la, por exemplo, com a determinação do presidente argentino Alberto Fernández, expressa neste vídeo).

O fato é que o Brasil caminha, como bovino ao matadouro, para algo próximo da tragédia antevista por Iamarino. Diversos sinais estatísticos mostram que suas projeções podem não ter sido exageradas. O primeiro é a condição, assumida pelo Brasil, de foco principal da covid-19. Ela está clara nos dois gráficos a seguir, publicados pelo site Our World in Data, que se tornou referência mundial para o acompanhamento da pandemia em todo o mundo. O primeiro gráfico compara a evolução do numero diário de novos casos, em países com situações semelhantes, diante da doença. Brasil, Estados Unidos, Rússia e Índia têm território continental, populações entre as maiores do planeta, fortes heterogeneidade étnica e desigualdade social.

[clique na imagem para ver o gráfico com detalhes]

O critério é o de casos por milhão – ou seja, estão descontadas as diferenças devidas à desproporção das populações. Repare que o Brasil acaba de ultrapassar o epicentro anterior da pandemia, os Estados Unidos. Num gráfico adiante, você verá que a “liderança” brasileira é ainda mais dramática porque, entre os quatro países, somos, de muito longe, o que menos oferece à população condições para testar a infecção pelo vírus. O segundo gráfico compara as mortes por milhão, também levando em conta a evolução diária. Claro: os Estados Unidos, que já ultrapassaram 100 mil óbitos, lideram. Mas a vantagem das curvas abaixo é apontar a tendência atual do número de vítimas fatais. Repare que, além de o Brasil ter ultrapassado os Estados Unidos, aqui a curva é ascendente – enquanto lá, ela declina, há cerca de quarenta dias, devido às medidas de lockdown tomadas em diversas partes do país, em especial em Nova York.

[clique na imagem para ver o gráfico com detalhes]

Porém, mais chocantes que estes dados são dois relatórios divulgados, ainda este mês, a partir de projeções estatísticas de matemáticos da Fundação Getúlio Vargas (Escola de Matemática Aplicada) e da Unicamp (Instituto de Geociências). Ambos partem de um fator epidemiológico decisivo: a taxa de contágio efetiva – ou seja o número de pessoas que cada paciente contaminado pelo vírus contagia, nas condições dadas pelas políticas de proteção existentes. Ambos partem da realidade atual de espalhamento da doença no Brasil. Ambos chegam a conclusões compatíveis com as de Iamarino.

estudo da FGV tem como foco as condições médias de difusão da pandemia em todo o Brasil. Ele estima que a taxa de contágio natural do coronavírus é de 3,5 (cada pessoa portadora transmite, durante a infecção, o vírus a 3,5 outras). Avalia também que, como o índice de distanciamento social do Brasil tem sido de 50%, a taxa de contágio efetiva caiu, provavelmente, para 1,75. A partir daí, calcula que, mantidas as condições atuais, a doença atingirá o máximo por volta de 14 de julho – ou seja, daqui a cerca de sete semanas. Nesse momento, teremos cerca de 65 mil novos casos por dia. Como a taxa de mortalidade, no Brasil, tem se mantido em torno de 6%, estes casos projetarão cerca de 4 mil mortes diárias. A partir deste ponto, ao menos na onda atual, a covid recuará, por já ter infectado cerca de 70% da população. O gráfico abaixo, que expressa as conclusões do estudo, é assustador. Procure, no eixo horizontal, a data de hoje. Verifique que, com cerca de 25 mil mortos, estamos ainda num ponto baixo do grande tsunami.

Fonte: FGV [clique na imagem para ler o estudo]

Já o trabalho da Unicamp, coordenado pelo matemático Renato Pedrosa, refere-se especificamente ao estado de São Paulo, onde ele estima uma taxa de contágio efetiva mais baixa: 1,44 – talvez devido à quarentena parcial vigente desde março. A partir da evolução do número de casos, e de mortes, registrado no período de trinta dias encerrado em 10/5, o pesquisador projeta os mesmos números para as próximas semanas. Conclui que, em 30/6, haverá 1,1 mil mortes diárias na capital, e 2,5 mil em todo o Estado. Os números são compatíveis com 10 mil mortes diárias no Brasil.

Embora tenebrosas, as projeções ainda não levam em conta dois fatores. O primeiro é a difusão da covid-19 pelo interior do país. Devido à modelo peculiar de difusão geográfico-social do vírus, é um processo lento, porém explosivo. Tome, por enquanto, o caso do Amazonas do Pará. As capitais foram rapidamente atingidas, talvez devido ao turismo internacional; o interior, só semanas mais tarde. Mas, uma vez instalada, entre populações que têm acesso muito menor à serviços de Saúde e à informação, a doença age de modo devastador. Agora, das vinte cidades brasileiras com maior índice de mortalidade por covid-19, quinze estão num dos dois maiores estados amazônicos.

[clique na imagem para ler a matéria]

A precariedade não é menor nos grotões de outros estados, onde o vírus agora começa a se difundir. Segundo uma nota técnica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), numa única semana (de 9 a 16/5), seis municípios entre 20 e 50 mil habitantes registraram, a cada dia, a primeira morte por covid-19. Quando a doença, já instalada, se espalhar, os riscos de colapso, num sistema hospitalar público já estressado, serão dramáticos.

O outro fator ausente até agora nas projeções é ainda mais preocupante. Além de interiorizar-se, a covid-19 está penetrando nas periferias. O fenômenos já é visível no município de São Paulo, o primeiro a ser contagiado e ainda hoje o epicentro da doença no Brasil. Ela chegou em primeiro lugar nos bairros ricos, trazida por viajantes internacionais, sem contato com as maiorias. Mas deslocou-se rapidamente e já no último domingo, segundo a secretaria municipal de Saúde, todos os vinte distritos com maior número de casos e de mortos estavam nas quebradas da cidade. Nelas, o isolamento social efetivo é, nas condições atuais, quase impossível e o acesso aos serviços de Saúde muito mais problemático que no centro.

Este quadro dramático exige, ao contrário do que estão decidindo neste momento os governadores e prefeitos, não relaxar a quarentena, mas intensificá-la ao ponto de que se converta em lockdown efetivo. Mas ele só será possível com um elenco claro de medidas que assegurem vida digna aos que o respeitarem. A intensidade com que a covid-19 ameaça atingir o Brasil é resultado tanto da negligência continuada do governo quanto da desigualdade atávica da sociedade. É provável que só seja possível enfrentar a pandemia, e evitar uma tragédia, destituindo Bolsonaro e iniciando, a partir da emergência atual, um novo esforço para construir um país mais justo. É o que veremos na parte final deste texto.

III. A sociedade cindida e o projeto bloqueado

A ausência, até o momento, de reação efetiva do Brasil diante da tragédia da covid-19 revela uma sociedade cindida e em fragmentação. Cindida porque uma parcela minúscula, porém muito poderosa, da população tem condições de se blindar da crise e de ganhar com ela. O gráfico abaixo mostra que, enquanto mais de mil brasileiros morrem, todos os dias, e mais de 20 mil se contaminam, os que aplicam na Bovespa continuam sorrindo satisfeitos. Entre 23 de março — quando os bancos centrais de todo o mundo anunciaram que emitiriam todo o dinheiro que fosse necessário para salvar os cassinos financeiros – e ontem (28/5), o ganho acumulado foi de 38,3%! O desemprego explode, as famílias afundam ainda mais em dívidas e milhares de pequenas empresas quebram e fecham, mas o lucro sagrado da oligarquia financeira, do 0,1%, permanece intocado. É esta “nova classe”, como já vimos, que continua garantindo a permanência de Bolsonaro no poder, a despeito de seus múltiplos crimes de responsabilidade e comuns e de suas incessantes ameaças à democracia.

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E a sociedade está em fragmentação porque, nas condições peculiares do capitalismo financeirizado, esta elite ínfima já não depende da existência de uma nação, para acumular riquezas. Nas fases anteriores, o antigo empresariado e seus representantes políticos acalentaram projetos de país, ainda que fragmentados – como é típico da periferia. Foi assim que construímos, por exemplo, uma rede de ferrovias, um sistema público de ensino, o povoamento do interior, a urbanização e industrialização, ou o SUS. Agora, o 0,1% não precisa dar-se a este esforço e a seus riscos. Numa única penada, o ministério da Fazenda autoriza os bancos a criarem, do nada, R$ 1,2 trilhão – e a oligarquia financeira blinda-se para lucrar durante o tempo que durar a epidemia. Como a “nova classe” comanda a política institucional e domina a mídia, ficam eternamente adiadas tanto a possibilidade de levar adiante um projeto nacional quanto o próprio debate em torno do tema.

Reverterbrar o Brasil exigirá, em algum momento, confrontar estes interesses. Por isso parece tão exasperante a ausência, na esquerda institucional, de um movimento neste rumo. E também por isso, vai se tornando claro que, nesta sociedade hoje bloqueada, qualquer tarefa coletiva – mesmo o combate elementar a uma pandemia – só se fará sacudindo suas estruturas. É este o sentido de um lockdown com justiça social. Já vimos, na primeira parte deste texto, como as piores previsões sobre a pandemia estão se concretizando: pode haver centenas de milhares de mortos Vimos também como a população apoia, em ampla maioria, as medidas mais restritivas de quarentena, necessárias para evitar a tragédia. Precisamos examinar, agora, as medidas necessárias para tornar este passo possível. Elas implicam forte redistribuição de riquezas e reorganização produtiva.

IVA Redistribuição de riquezas

Durante o naufrágio do Titanic, não se discriminava os que entravam nos botes salva-vidas. Mas os passageiros da segunda e terceira classe estavam nos porões, e em muitos casos sua passagem para o convés foi vedada com grades. Entre os últimos, 88% afundaram com o navio. Na luta contra a pandemia, a maioria dos brasileiros – em especial os que vivem nas periferias – enfrenta algo semelhante. No melhor dos casos, eles são aconselhados a se proteger em casa, como os demais. Mas não podem fazê-lo, sob pena de perecer. São estes que, como mostra o DataFolha, estão no grupo que mais compreende e apoia o lockdown. Mas são eles também que, movidos pela necessidade, pedalam pelas ruas com um baú nas costas, aceitam um bico de pintura, cedem à pressão do empregador para abrir a loja que funciona com porta semicerrada ou armam uma banca de camelô, numa rua de comércio popular.

Num país desigual como o Brasil, decretar a quarentena, sem gerar condições efetivas para que ela seja cumprida, é uma farsa semelhante ao gesto da Princesa Isabel. Sem terra ou teto, sem bens e sem reparação, os negros tornaram-se “livres” – para morrer à míngua ou se deixar humilhar. Há alternativas reais, mas elas exigem romper as grades com que o 0,1% mantém inacessível o convés. Eis três linhas principais:

a) Renda Básica da Cidadania:

Concedido de mal grado pelo governo — que pretendia oferecer uma esmola de um terço deste valor – o auxílio de R$ 600 mensais foi uma conquista. Sem ele, milhões estariam agora passando fome. Mas, nas metrópoles onde vivem 80% dos brasileiros, o valor é totalmente incapaz de indenizar (ou seja, manter sem danos) aqueles que devem seguir a quarentena. Como esta maioria não tem reservas e, quase nunca, acesso ao trabalho a distância, é forçada a romper o distanciamento presencial.

lockdown com justiça social oferece uma oportunidade inédita de difundir a necessidade de uma Renda Básica da Cidadaniaum dos eixos de um projeto pós-capitalista contemporâneo. Para ser efetiva, na luta contra a pandemia, esta renda deve equivaler a um salário-mínimo (no futuro, precisa aumentar); ser paga a todos, pelo tempo que durarem a doença e o afastamento; e transferida sem filas, humilhações, atrasos e burocracias. Depositada, por exemplo, numa conta bancária aberta, pelo Banco Central, em favor de cada CPF.

Com R$ 1045 mensais por pessoa, é mais possível manter-se no Brasil. Os recursos não sairão do Orçamento – não prejudicarão, portanto, nenhum programa social. O dinheiro será criado do nada pelo Estado brasieiro. Se a crise durar mais quatro meses, e se houver 150 milhões de CPFs, serão R$ 624 bilhões: metade, apenas do que o Estado autorizou os bancos privados a criarem, em 23/3, quando anunciou-se a salvação dos cassinos financeiros.

Estas operações desequilibrarão as regras orçamentárias de “ajuste fiscal”, vigentes antes da pandemia? Seguramente, sim! Mas elas já estão totalmente destroçadas – e continuarão a sê-lo – porque a economia global entrou em crise profunda e duradoura, e dela só sairá com muito mais amparo e dinheiro estatal. A exigência de uma Renda Básica da Cidadania, além das medidas complementares necessárias, trarão, aliás, um benefício suplementar. Exigirão que as regras do pós-crise sejam negociadas amplamente entre a sociedade. É uma alternativa muito mais justa e democrática do que serem impostas pela oligarquia financeira – na forma de políticas de destruição dos serviços públicos e concentração de riquezas – como ocorreu após a crise de 2008.

b) Renegociação das dívidas, obrigatória aos bancos:

A segunda mola que obriga os brasileiros a desrespeitar a quarentena formal é o altíssimo endividamento. A dívida das pessoas físicas junto aos bancos ultrapassa R$ 3 trilhões – e a das pessoas jurídicas, quase sempre pequenas e médias, R$ 1,3 trilhão. As taxas de juros não têm paralelo em nenhum país do mundo. Oscilam entre 60% ao ano (desconto de duplicatas) a 250% (cheque especial) ou 350% (cartão de crédito) – quando ficam na casa de um dígito em quase todos os outros países do planeta. Da renda dos brasileiros, uma parte substancial é capturada hoje pelas famílias bilionárias que controlam os bancos.

O problema é tão grave que o governo incluiu, nas primeiras medidas anticrise, recursos para que os bancos oferecessem renegociação das dívidas em condições menos extorsivas. E os próprios bancos criaram campanhas publicitárias em que afirmam estar sensíveis às dificuldades de seus clientes. Porém, nada disso ocorreu na vida real. Como os subsídios oferecidos pelo governo não impõem condições aos bancos, estes simplesmente não repassam as linhas de crédito menos caro a seus clientes. Ao contrário: como mostram dezenas de matérias nos jornais, as linhas de financiamento secaram ou, quando perduram, incluem taxas de juros ainda mais alta e garantias (comprometimento dos bens dos devedores) mais leoninas. Se mantidas estas condições, surgirá, terminada a pandemia, uma população muito mais afundada em dívidas e submissa à oligarquia financeira.

Há uma medida prática, para enfrentar tal desastre. O Estado brasileiro e o Banco Central devem determinar que os bancos, ao invés de abrirem linhas de crédito incertas, realizem compulsoriamente a reestruturação das dívidas já existentes. Ela deve beneficiar tanto os devedores ativos quanto os inadimplentes. Os valores devidos serão consolidados. Ao total, será aplicada uma taxa de juros igual à Selic (3% ao ano), compatível com a praticada pelos bancos em todo o mundo. O prazo será definido de forma a que a prestação mensal não supere 5% da renda das pessoas físicas, ou do faturamento das pequenas e médias empresas endividadas.

A medida representará, é certo, forte queda no lucro dos bancos brasileiros. Eles têm gordura para queimar: os cinco anos de recessão ou estagnação econômica contínua, entre 2015 e 2019, ampliaram incessantemente seus lucros, a ponto de os ganhos apenas dos quatro maiores chegarem, no ano passado, a R$ 59,7 bilhões. Está na hora de fazerem, em nome do combate à pandemia, uma contrapartida à sociedade que vá além de sorrisos no horário nobre das TVs.

c) Proibição das demissões:

As medidas anteriores precisam ser complementadas pela proteção aos trabalhadores da economia formal. A partir do golpe de 2016, o Brasil viveu uma vasta contrarreforma trabalhista e uma sucessão de medidas de idêntico sentido. Em conjunto, elas estimularam como nunca a informalidade do trabalho e a corrosão dos direitos laborais mesmo daqueles assalariados que permanecerem com registro. O pretexto adotado, como era de esperar, nunca se realizou: ao invés de criação de novos postos de trabalho, o nível de desemprego aberto estava em 12% antes da pandemia. Somado ao subemprego, indicava que 50% da população ativa do país ou estava desocupada, ou trabalhava sem as menores condições de proteção social.

Agora, há risco de este drama explodir. Consultores do mercado financeiro já falam numa taxa de 25% ao fim do ano. Milhões de trabalhadores já estão em regime de desligamento temporário ou de redução de jornada e salários – o que representa mais insegurança e pressão contra a quarentena. Há também saída, e nem tão radical. Alemanha e Holanda, por exemplo, restringiram demissões e ofereceram apoio estatal às empresas que demonstrassem dificuldade financeira e se comprometessem a não dispensar trabalhadores. Parece coisa apenas de países ricos? Olhe para a vizinha Argentina, onde o governo Fernández adotou – por ato equivalente a uma Medida Provisória – a proibição de todas as demissões.

V. A Reorganização produtiva

Um dos aspectos que mais choca, na prostração brasileira diante da covid-19, é a ausência completa de iniciativas para reorganizar a produção e voltá-la – ainda que muito parcialmente – às necessidades sociais. O caso mais emblemático é o dos respiradores. São indispensáveis para salvar milhares de vidas. Não requerem sofisticada: alguns protótipos que funcionam satisfatoriamente foram produzidos por grupos de estudantes, em fundos de quintal. No entanto, mais de cinco meses se passaram desde que ficou clara a necessidade dos aparelhos e não foi adotada a mínima providência para suprir as necessidades da rede de Saúde.

A negligência se repete no caso de dois outros itens tão ou mais necessários (porque requeridos por toda a população, não só pelos doentes graves) e ainda mais fáceis de produzir. O Brasil está entre os países que menos testa sua população para aferir e rastrear a presença da covid-19. O gráfico abaixo dispensa comentários. Fazemos dezenas de vezes menos testes, por milhão de habitante, que a Rússia – uma das líderes neste esforço. Estamos muito abaixo dos Estados Unidos, que durante muitas semanas também negaram a importância de testar. Mas ficamos além disso vários corpos atrás da Índia, cujo PIB per capita é quatro vezes inferior ao nosso. E por fim, não produzimos sequer máscaras protetivas adequadas, que faltam, em muitos estados, aos próprios profissionais de Saúde.

Tudo isso contrasta com o pioneirismo global que o Brasil exerceu, graças ao SUS e há cerca de vinte anos, tratamento gratuito (e proteção da vida) a todos os portadores de HIV. Ou com nossa capacidade de substituir importações rapidamente, em diversos momentos de guerra ou crise cambial no século passado.

Já no início de março, pesquisadoras do Instituto Adolfo Lutz, uma instituição ligada à USP, haviam mapeado o código genético do coronavírus encontrado nos primeiros pacientes do país cientistas do Brasil. À mesma época, a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, anunciou que havia sido capaz de produzir os primeiros kits para testagem da presença do patógeno. Porém, depois de quase quatro meses, a produção é ínfima; o processamento dos testes lentíssimo. O país demora dias ou semanas, até mesmo para saber se cada óbito suspeito pode ou não ser atribuído à covid-19 – quanto mais, para rastrear e combater eficazmente a doença. Já as máscaras, em especial as que garantem ao menos 95% de proteção contra as gotículas que transportam o vírus, são indispensáveis para proteger os trabalhadores de Saúde e para reduzir ao máximo a contaminação nas áreas em que o isolamento social absoluto é impossível, como as favelas.

Só há uma razão plausível para o retardo: o governo é dominado por uma ideologia de submissão ao mercado extrema, que o impede de dirigir até mesmo a produção, simples, dos itens mais indispensáveis à preservação da vida. Há múltiplos instrumentos para isso: da Lei Delegada número 4, que permite requisitar bens e serviços para satisfazer as necessidades sociais, aos mecanismos de crédito, subsídio, incentivo e isenção fiscal de que dispõem o governo, o Banco Central, a Receita Federal, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa.

Eles devem ser utilizados para cumprir três necessidades centrais. No terreno da indústria, produzir os bens necessários ao combate à pandemia – testes, máscaras e respiradores encabeçam a lista. Nos serviços, requisitar quartos de hotéis, hoje com baixíssima ocupação. Eles servirão para abrigar as pessoas contagiadas que vivam em casas com alta densidade de moradores; e para proteger as mulheres e famílias. No campo da pesquisa, eles reintegrarão o Brasil na busca de vacinas e medicamentos contra a covid-19.

VI. A pandemia e o pandemônio

No momento em que este texto é fechado, noite de 28/5, o Brasil está diante de uma ameaça dupla, expressa na epígrafe deste texto. A covid-19 voltou a recrudescer, nas últimas 48 horas. Ampliar o isolamento social, articulando-o com medidas inéditas de redistribuição de riquezas e de orientação da economia pelo Estado parece indispensável. Porém, parece, ao mesmo tempo, uma utopia inatingível? Como sonhar com isso, quanto o país é ameaçado de perder até mesmo o pouco que resta de sua democracia?

O argumento central deste texto é de que estas tarefas não são contraditórias – e talvez uma não possa ser executada sem a outra. Sim, é preciso antes de mais nada derrotar as ameaças de Bolsonaro contra a democracia, ou não haverá sequer condições de criticar sua negligência criminosa diante da pandemia.

Mas, para reverter o apoio que Bolsonaro ainda tem entre uma parcela minoritária da população – e, portanto, para viabilizar sua queda e prisão, indispensáveis à democracia – é necessário ir além do campo em que ele quer manter a disputa. O ex-capitão, afastado do Exército por planejar atentados terroristas e deplorado por personagens como Ernesto Geisel, precisa ser visto por uma maioria esmagadora não apenas como antidemocrático – mas como incapaz, indolente e, acima de tudo, ligado aos donos do poder, ao 0,1%.

Para isso, será necessário demonstrar que a democracia, os direitos, a igualdade, o bem-estar, a Saúde, o Público, o Comum – todos estes objetivos exigem desmascarar não apenas o ex-capitão patife e fascista. Mas a “nova classe” que o apoia, porque continua a se beneficiar de seu poder e é indiferente a suas ameaças. Esta dupla tarefa, sintetizada com maestria por Danilo Pássaro, é o que nos desafia agora.

Fonte: Outras Palavras

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